sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Olha

“Olha...”

Mas se me apetece não olhar a vida inteira

E não ver que o tempo passsa,

Porquê olhar a vida inteira

Para a vida inteira

E dizer “Olha...

Já não és criança”?


Eu quero ser a vida inteira.

Não. Eu não quero ser a vida inteira,

Eu sou criança e esta é a minha infância.

Agosto, 2008

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Numa Rua (de "Cinco Maneira de Sentir o Sexto Sentido")

Numa rua qualquer mora um homem que um dia também quis comer.


É o momento de cear e já todos se encontram no seu canto, alguns rezando, outros aguardando e mais uns quantos embirrando, porque não era o que eles queriam. Todos, salivando um prato atulhado em sustento, ansiando sustentarem-se com ele.

É o momento de cear. Todos salivam, mas nem todos salivam pela tentação em começar a esvaziar aquele imenso farto de comida. Aguardo também, no lar e sentado, com água na boca. Mas não por iniciar o processo a que convém apelidar de desperdício. Aguardo o instante em que o caixote se enche, para ir cavar a minha própria morte, o sustento desperdiçado. Sentir o autêntico paladar do sentido, mesmo que a troco da ceifa da minha vida. Saborear o todo do desejo e, todavia, não me sentir desejado pelo gosto. Ser egoísta ao ponto de roubar a mais ínfima porção do prazer de deliciar, sem deixar escapar para o mantimento essa deliciosa satisfação.

Julgam que no interior de cada residência reside a condição que concebe ao ser humano a compreensão de cada gustação. E como o podem fazer se nunca experimentaram o paladar do suor? É este que recompensa o esforço e me revela o real paladar de cada sustento, deixando-me no devaneio do sabor delirante. Mas, afinal, de que se trata o tão bendito suor? Sim, é isso mesmo. Aquilo que sumiu há muitas eras dos Homens, quando estes deram de caras com a lei do menor esforço e preferiram viver do que eles denominam cómodo, pondo de parte o verdadeiro sentido desta última palavra. Eu alimento-me, comodamente, do meu suor, de uma maneira para eles vergonhosa. Mas é certo, tenho em mim uma genuína purificação das papilas gustativas.

E não preciso aguardar os outros para cear, porque a espera atrairá mais e mais papilas gustativas como as minhas, que, com certeza, serão tão egoístas quanto eu. Sou egoísta, para sentir comodidade preciso de o ser. Quero o que é bom para mim e só quero o que preciso. Tenho de devorar, no mínimo tempo, o máximo sustento, de maneira a que as sobras para outros da minha espécie sejam mera ilusão. Além disso, exijo de mim a agilidade de não deixar vestígios de presença, ou acabaria por ditar a minha sentença, já que os frívolos seres humanos que depositam o desperdício julgam alimentarem-me. E alimentarem o mendigo é auto-humilhação. Segundo a sua perspectiva devem exterminar-me, de maneira a que criaturas diferentes deixem de prevalecer. Visam atingir igualdades, mas eu sou desigual, tal e qual eles me definem, não é?

As birras, seguidas do “não quero isso!” e “não gosto disso!”, são, francamente, a sua queda no ritual do desperdício. Sofrem a transformação em seres humanamente vulgares no momento em quaisquer sinais de educação gustatória deveriam ser atribuídos, mas não são. E sem a capacidade de escolha, sofrem a influência de alguém que foi influenciado por outro influenciado. Quando os provo, sabem-me a pudor. Sei que não têm a mínima capacidade de selecção, mas admito também que, mais tarde, irão ser os “leis do menor esforço” que impedirão reais sabores, gostos e paladares invadirem cada recanto de um então formado novo mundo.

Todavia, permaneço no mesmo lado, eternamente condenado aos costumes tão do meu quotidiano. Estou aqui, não porque tenho, mas porque quero. Quero continuar a valorar o íntimo de cada capricho, que tão satisfeito deixa o meu paladar. Quero continuar a gostar das texturas e forma do saborear! E, de cada vez que olhar o prato atulhado, conceder-lhe o tamanho concreto! O tamanho, o tão desesperado tamanho!


Junho, 2007

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Cuco, meu Cuco

"A misteriosidade incial, através de suposições previamente falhadas ou questões colocadas serve simplesmente como demonstração de que o amigo imaginário que eu falo não é fruto de meras implicações que um psicólogo, um dia, se lembrou de descobrir. Não, ele representa é a naturalidade. O Cuco nasce naturalmente, por ele próprio, isto é, segundo o seu instinto (embora este tenha partido dos meus sentidos)."

Não me peçam para relembrar a infância. Não quero lembrar-me de nada dela, não quero passar com a dor de não ter multiplicada pela dor de já não poder. Da infância, nada guardei. Trouxe apenas dela o que não é infância. E isso, eu posso contar-vos.

Podia ter sido um divórcio. Ou mesmo uma mudança de casa, uma escola nova ou um amigo perdido. Mas não foi, porque isso não aconteceu sequer. O nascimento da irmã? Não, nessa altura não foi.

Ansiedade, falta de amizades, brigas, intrigas. Sei que quando deitei fora a minha infância, ela não levava nada disso. E o que não é infância e ficou comigo também não contém dessas coisas. Não, não pode ser explicado segundo métodos previamente estudados por mil e um psicólogos e sociólogos decididos a pôr fim à magia disto tudo, como eles dizem. Se isto não tem magia, não há fim que eles possam pôr.

Nunca os ouvi falar dele, nunca me perguntaram sequer se acreditava na sua existência. E eu não defendia vigorosamente a ideia da sua existência, porque não precisava sequer de acreditar. Eu tinha-o diante de mim. Não sentia a minha consciência moer palavras e pensar na melhor forma de me enganar, afirmando ser o Cuco. O Cuco era o Cuco, só isso.

E o Cuco não era personificado, mas também não era invisível. O Cuco era as minhas mãos, os meus olhos, o meu nariz, os meus ouvidos e a minha língua. O Cuco era o que eu era sem tomar a forma humana. E não era invisível, porque era eu, e todos me veem como matéria desde a minha gestação.

Uma vez, e dessa vez eu lembro-me tão bem, que ia a caminhar ao lado do jardim de minha casa, o Cuco falou-me que queria mostrar a nossa amizade ao mundo. E eu não entendi porquê expôr as minhas mãos, os meus olhos, o meu nariz, os meus ouvidos e a minha língua. Eu já sabia, eu tinha ouvido a minha mãe dizer-me, quando lhe perguntei pelos amigos que só nós vemos, que tudo não passa de imaginação, imagens criadas pela nossa “cabecinha”, para nos ajudar a não enfrentar os problemas sozinhos. Eu não tinha problemas, mas todos iam julgar que eu tinha problemas. Ou então, que não era acarinhado, ou amado. Mas eu era isso tudo, e era ainda mais com o meu amigo Cuco.

Hoje o Cuco escreve. Dita-me as palavras para os dedos que também são seus. Sinto-me estranho, mas eu sempre me senti assim. Só que hoje disse-vos que tenho um melhor amigo, o meu amigo Cuco.


Novembro, 2007


sábado, 3 de janeiro de 2009

Ainda que seja só a minha rua

Lembro-me da minha rua crescer,

Mas não me lembro do meu crescer.

Não tinha tempo.

Enquanto a minha rua crescia

Eu via apenas o novo que havia

E queria a sua vida.

Nem tive eu tempo p’ra minha.


Hoje desci à minha rua meus olhos

E lembrei-me do entardecer, demorado

Em Estios, e quando me invadiam choros.

E pensei que chorei tudo em criança

E chorei como chorava de infância.


Os filhos que nesta rua

Acordavam com o Sol nascer,

Hoje nem sequer passam nela

Seus olhos, ignorando a raíz do seu saber.


Mas hoje, aquando o chorar,

Disse a mim mesmo:

Nasci, cresci, vivi...

E mais vos digo:

Eu ainda hei-de morrer nesta rua.


Setembro, 2007

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A criança, o mundo e o mundo criança

Ele. É ele, isso mesmo. Não interessa o nome, a idade, interessa apenas que é ele e é uma criança. O resto não existe, porque a identidade não mata a fome, não limpa um corpo na estação seca ou protege a pele contra uma picada do mosquito da malária, ou o cancro da pele provocado devido ao imenso buraco na camada de ozono, do qual é responsável ninguém (e quem poderia ser, afinal? Ele, ele bem sabe que não é, mas também sabe que as probabibilidades de sofrer por causa do buraco são grandes).
Existe outro ele (e não vai ser preciso distingui-lo do primeiro ele). Hoje acordou preguiçosamente, de estar tão quentinho nos lençóis (ele acordou no Kalahari, estava com a família à procura de água e foram raptados por rebeldes). De seguida, gritou para a mãe que hoje não faria a cama, estava de férias (“Tenho medo”, disse ele amarrado ao colo da mãe, sob a ameaça de uma Fuzil Johnson M1941). Correu até ao ponto de encontro, já sabia que ia impressionar tudo e todos, e assim o foi. Quando chegou, toda aquela vasta variedade de jovens ficou fascinada com ele, com as sapatilhas tão desejadas por qualquer membro do grupo (e ele, que só desejava que o deixassem descansado, não se importaria de beber a água turva de todos os dias e de comer a sua carcaça de pão rija; nunca se importou).
Os seus olhos foram vendados (ele caminhou pelo meio de todos, cego pela riqueza que possuía). Todos foram fechados numa cela de paredes em cimento, dois por três metros (ele chegou a casa, atirou os sapatos para o meio da cozinha e correu rumo ao quarto, onde pensava estar a sua consola de jogos). Cinco pessoas, cinco dias e cinco noites, sem que comida aparecesse. O chão já não existia, multiplicavam-se as moscas doentias e doentes pelo cheiro, o cheiro a pessoas e aos restos que já não são seus nem da terra, são restos e nada mais.
Nessa noite, ele foi jantar com os seus pais ao restaurante mais fino da cidade. Nessa noite, seria a última noite que ele aguentaria sem jantar. A sua mãe tirou-lhe as espinhas ao peixe, que ele tanto protestou em comer. No final, acabou por conseguir o que quis. O peixe passou para o prato da mãe e o pai pediu um prego no prato para a criança. Ambos estavam felizes em ver o filho contente. Mas, nesse momento não estavam ambos felizes, porque o filho lhes tinha morrido nos braços.
Se ele e ele são realmente o mesmo pronome pessoal, porque não tratá-los exactamente da mesma forma?

Dezembro, 2008

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Pensar: dez minutos

Estava atrasado. Dez minutos!
Eu esperava-o atentamente, sem qualquer rasgo de sentimentos que me pudessem conceder um rosto mais vivo. Limitava-me a fixar os carris. Apenas desejava que os próximos dez minutos fossem os mais rápidos da minha vida, pois esperar é para pessoas pacientes, não para a alma na flor da idade que se encontra desesperada na estação, por se enfiar na primeira carruagem que lhe aparecer na frente. E muito menos para quem anseia chegar ao destino e cair nos braços da nona ou décima cara-metade do seu vigésimo ano de existência.
Acordei com os pés fora da cama, se é que o posso dizer assim. A mesma má disposição que me subjuga todos os dias à mesma rotina. Já estou habituado a sê-lo, é um ponto registado na minha pele, na minha amarga e seca pele. E eu sei melhor que ninguém como ela é. E nada faço para a emendar. No fundo, sei que não existe um espírito capaz de não ser assim. Talvez devido ao nico de inconsciência, a que eu gostaria de apelidar inocência, que nos submete ao modo mais consciente de lidar com o desagradável. Sim, o nosso carácter outrora insubmisso, o querermos fazer aquilo que realmente amamos. Aquilo que foi apagado dos brilhantes juízos, devido à sua brilhante evolução. Gostar já não basta, é necessário aprender a gostar. E, de cada vez que medito nisto, um fervor em mim segreda-me que devo respirar essa inconsciência inocente, própria do ser humano justo consigo próprio. No entanto, apenas se me quedo por aqui, pensar, tal e qual todos o fazem. Já não se vive da acção desejada, sobrevive-se com o desejo da acção.
Lembro-me quando tinha cinco anos. Adorava abordar qualquer pessoa, exprimir um olá, não por uma questão de afirmação da idade, mas por socialização. Costumava fazê-lo, até ao dia em que a minha mãe me ouviu cumprimentar uma rua empestada de pessoas e, quando chegou a casa, discursou-me algo tão pouco puro para a minha idade, tão carregado de sentimentos a fervilhar confusão, que desatei a chorar sem atingir patavina do seu sermão. Hoje, compreendo-a. Fui dos que teve a felicidade de chegar aos vinte anos em casa dos meus santos progenitores, sem que qualquer perturbação por parte de pessoas incómodas que nos atarantassem a puta vida. Oxalá essa gente não existisse para eu poder considerar a atitude da minha mãe ruim! Queria ter falado com todos, sem que todos fossem pessoas estranhas. Queria espalhar cada palavra que teve de ser afogada no momento em que precisava de ser expulsa. Eu entendo-te mãe, não te preocupes. Só não entendo o resto da humanidade.
Continuo a detestar isolar-me do mundo, mas por hábito prepotente, faço-o. As pessoas aprenderam a pôr de lado, não só o mau, como o que desconhecem. Reparo com toda a clareza nisso naquela pequena povoação de chineses, mesmo lá ao lado da minha casa. Todos ignoram a sua cultura, portanto, são considerados devassos. Mas eu penso que digo bons dias inconscientemente a todos eles. Contudo, penso, não o faço. Gostava de saber não olhar de lado, mas a verdade é que não consigo. E quem consegue, é porque se encontra na linha do outro extremo, continuando igualmente na onda de desrespeito. Em vez de vivermos segundo uma relação cultural, sobrevivemos a construir o muro que nos separa da guerra, quando não subsistimos desta mesma.
Raios! O que a afluência à má influência provoca no ser humano. Agarrar a maior futilidade possível no menor tempo, porque tempo é dinheiro! Criar a maior barreira de individualização, de forma a não haver qualquer partilha, desconfiando que todo o resto do mundo é oportunista. E, depois de pensar isso, ser oportunista.
No momento em que desperto do meu pesado pensar, passa por mim uma senhora que, distraída e preocupada com a correria do filho, deixa cair a nota nos carris. Dá-me jeito. Vou apanhá-la, mas sou apanhado de surpresa pela investida da máquina que vem já de longe a gritar hipocrisia, mas que só agora entendi. O que aconteceu? Pereci daquilo que menos me falta.

Novembro, 2005