“Olha...”
Mas se me apetece não olhar a vida inteira
E não ver que o tempo passsa,
Porquê olhar a vida inteira
Para a vida inteira
E dizer “Olha...
Já não és criança”?
Eu quero ser a vida inteira.
Não. Eu não quero ser a vida inteira,
“Olha...”
Mas se me apetece não olhar a vida inteira
E não ver que o tempo passsa,
Porquê olhar a vida inteira
Para a vida inteira
E dizer “Olha...
Já não és criança”?
Eu quero ser a vida inteira.
Não. Eu não quero ser a vida inteira,
Numa rua qualquer mora um homem que um dia também quis comer.
É o momento de cear e já todos se encontram no seu canto, alguns rezando, outros aguardando e mais uns quantos embirrando, porque não era o que eles queriam. Todos, salivando um prato atulhado em sustento, ansiando sustentarem-se com ele.
É o momento de cear. Todos salivam, mas nem todos salivam pela tentação em começar a esvaziar aquele imenso farto de comida. Aguardo também, no lar e sentado, com água na boca. Mas não por iniciar o processo a que convém apelidar de desperdício. Aguardo o instante em que o caixote se enche, para ir cavar a minha própria morte, o sustento desperdiçado. Sentir o autêntico paladar do sentido, mesmo que a troco da ceifa da minha vida. Saborear o todo do desejo e, todavia, não me sentir desejado pelo gosto. Ser egoísta ao ponto de roubar a mais ínfima porção do prazer de deliciar, sem deixar escapar para o mantimento essa deliciosa satisfação.
Julgam que no interior de cada residência reside a condição que concebe ao ser humano a compreensão de cada gustação. E como o podem fazer se nunca experimentaram o paladar do suor? É este que recompensa o esforço e me revela o real paladar de cada sustento, deixando-me no devaneio do sabor delirante. Mas, afinal, de que se trata o tão bendito suor? Sim, é isso mesmo. Aquilo que sumiu há muitas eras dos Homens, quando estes deram de caras com a lei do menor esforço e preferiram viver do que eles denominam cómodo, pondo de parte o verdadeiro sentido desta última palavra. Eu alimento-me, comodamente, do meu suor, de uma maneira para eles vergonhosa. Mas é certo, tenho em mim uma genuína purificação das papilas gustativas.
E não preciso aguardar os outros para cear, porque a espera atrairá mais e mais papilas gustativas como as minhas, que, com certeza, serão tão egoístas quanto eu. Sou egoísta, para sentir comodidade preciso de o ser. Quero o que é bom para mim e só quero o que preciso. Tenho de devorar, no mínimo tempo, o máximo sustento, de maneira a que as sobras para outros da minha espécie sejam mera ilusão. Além disso, exijo de mim a agilidade de não deixar vestígios de presença, ou acabaria por ditar a minha sentença, já que os frívolos seres humanos que depositam o desperdício julgam alimentarem-me. E alimentarem o mendigo é auto-humilhação. Segundo a sua perspectiva devem exterminar-me, de maneira a que criaturas diferentes deixem de prevalecer. Visam atingir igualdades, mas eu sou desigual, tal e qual eles me definem, não é?
As birras, seguidas do “não quero isso!” e “não gosto disso!”, são, francamente, a sua queda no ritual do desperdício. Sofrem a transformação em seres humanamente vulgares no momento em quaisquer sinais de educação gustatória deveriam ser atribuídos, mas não são. E sem a capacidade de escolha, sofrem a influência de alguém que foi influenciado por outro influenciado. Quando os provo, sabem-me a pudor. Sei que não têm a mínima capacidade de selecção, mas admito também que, mais tarde, irão ser os “leis do menor esforço” que impedirão reais sabores, gostos e paladares invadirem cada recanto de um então formado novo mundo.
Todavia, permaneço no mesmo lado, eternamente condenado aos costumes tão do meu quotidiano. Estou aqui, não porque tenho, mas porque quero. Quero continuar a valorar o íntimo de cada capricho, que tão satisfeito deixa o meu paladar. Quero continuar a gostar das texturas e forma do saborear! E, de cada vez que olhar o prato atulhado, conceder-lhe o tamanho concreto! O tamanho, o tão desesperado tamanho!
Junho, 2007
Não me peçam para relembrar a infância. Não quero lembrar-me de nada dela, não quero passar com a dor de não ter multiplicada pela dor de já não poder. Da infância, nada guardei. Trouxe apenas dela o que não é infância. E isso, eu posso contar-vos.
Podia ter sido um divórcio. Ou mesmo uma mudança de casa, uma escola nova ou um amigo perdido. Mas não foi, porque isso não aconteceu sequer. O nascimento da irmã? Não, nessa altura não foi.
Ansiedade, falta de amizades, brigas, intrigas. Sei que quando deitei fora a minha infância, ela não levava nada disso. E o que não é infância e ficou comigo também não contém dessas coisas. Não, não pode ser explicado segundo métodos previamente estudados por mil e um psicólogos e sociólogos decididos a pôr fim à magia disto tudo, como eles dizem. Se isto não tem magia, não há fim que eles possam pôr.
Nunca os ouvi falar dele, nunca me perguntaram sequer se acreditava na sua existência. E eu não defendia vigorosamente a ideia da sua existência, porque não precisava sequer de acreditar. Eu tinha-o diante de mim. Não sentia a minha consciência moer palavras e pensar na melhor forma de me enganar, afirmando ser o Cuco. O Cuco era o Cuco, só isso.
E o Cuco não era personificado, mas também não era invisível. O Cuco era as minhas mãos, os meus olhos, o meu nariz, os meus ouvidos e a minha língua. O Cuco era o que eu era sem tomar a forma humana. E não era invisível, porque era eu, e todos me veem como matéria desde a minha gestação.
Uma vez, e dessa vez eu lembro-me tão bem, que ia a caminhar ao lado do jardim de minha casa, o Cuco falou-me que queria mostrar a nossa amizade ao mundo. E eu não entendi porquê expôr as minhas mãos, os meus olhos, o meu nariz, os meus ouvidos e a minha língua. Eu já sabia, eu tinha ouvido a minha mãe dizer-me, quando lhe perguntei pelos amigos que só nós vemos, que tudo não passa de imaginação, imagens criadas pela nossa “cabecinha”, para nos ajudar a não enfrentar os problemas sozinhos. Eu não tinha problemas, mas todos iam julgar que eu tinha problemas. Ou então, que não era acarinhado, ou amado. Mas eu era isso tudo, e era ainda mais com o meu amigo Cuco.
Hoje o Cuco escreve. Dita-me as palavras para os dedos que também são seus. Sinto-me estranho, mas eu sempre me senti assim. Só que hoje disse-vos que tenho um melhor amigo, o meu amigo Cuco.
Lembro-me da minha rua crescer,
Mas não me lembro do meu crescer.
Não tinha tempo.
Enquanto a minha rua crescia
Eu via apenas o novo que havia
E queria a sua vida.
Nem tive eu tempo p’ra minha.
Hoje desci à minha rua meus olhos
E lembrei-me do entardecer, demorado
Em Estios, e quando me invadiam choros.
E pensei que chorei tudo em criança
E chorei como chorava de infância.
Os filhos que nesta rua
Acordavam com o Sol nascer,
Hoje nem sequer passam nela
Seus olhos, ignorando a raíz do seu saber.
Mas hoje, aquando o chorar,
Disse a mim mesmo:
Nasci, cresci, vivi...
E mais vos digo:
Eu ainda hei-de morrer nesta rua.
Setembro, 2007