quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A criança, o mundo e o mundo criança

Ele. É ele, isso mesmo. Não interessa o nome, a idade, interessa apenas que é ele e é uma criança. O resto não existe, porque a identidade não mata a fome, não limpa um corpo na estação seca ou protege a pele contra uma picada do mosquito da malária, ou o cancro da pele provocado devido ao imenso buraco na camada de ozono, do qual é responsável ninguém (e quem poderia ser, afinal? Ele, ele bem sabe que não é, mas também sabe que as probabibilidades de sofrer por causa do buraco são grandes).
Existe outro ele (e não vai ser preciso distingui-lo do primeiro ele). Hoje acordou preguiçosamente, de estar tão quentinho nos lençóis (ele acordou no Kalahari, estava com a família à procura de água e foram raptados por rebeldes). De seguida, gritou para a mãe que hoje não faria a cama, estava de férias (“Tenho medo”, disse ele amarrado ao colo da mãe, sob a ameaça de uma Fuzil Johnson M1941). Correu até ao ponto de encontro, já sabia que ia impressionar tudo e todos, e assim o foi. Quando chegou, toda aquela vasta variedade de jovens ficou fascinada com ele, com as sapatilhas tão desejadas por qualquer membro do grupo (e ele, que só desejava que o deixassem descansado, não se importaria de beber a água turva de todos os dias e de comer a sua carcaça de pão rija; nunca se importou).
Os seus olhos foram vendados (ele caminhou pelo meio de todos, cego pela riqueza que possuía). Todos foram fechados numa cela de paredes em cimento, dois por três metros (ele chegou a casa, atirou os sapatos para o meio da cozinha e correu rumo ao quarto, onde pensava estar a sua consola de jogos). Cinco pessoas, cinco dias e cinco noites, sem que comida aparecesse. O chão já não existia, multiplicavam-se as moscas doentias e doentes pelo cheiro, o cheiro a pessoas e aos restos que já não são seus nem da terra, são restos e nada mais.
Nessa noite, ele foi jantar com os seus pais ao restaurante mais fino da cidade. Nessa noite, seria a última noite que ele aguentaria sem jantar. A sua mãe tirou-lhe as espinhas ao peixe, que ele tanto protestou em comer. No final, acabou por conseguir o que quis. O peixe passou para o prato da mãe e o pai pediu um prego no prato para a criança. Ambos estavam felizes em ver o filho contente. Mas, nesse momento não estavam ambos felizes, porque o filho lhes tinha morrido nos braços.
Se ele e ele são realmente o mesmo pronome pessoal, porque não tratá-los exactamente da mesma forma?

Dezembro, 2008

3 comentários:

  1. os contraste cortam a respiração

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  2. Considero, sem dúvida, um dos melhores textos por ti alguma vez escritos. É notável o paralelismo sempre existente entre as duas facções de um mesmo «eu». O lado sarcástico, mas concomitantemente genial, faz criar em nós, ao longo de todo o texto, um sentimento de culpa perante todas as situações descritas. E é por esta genialidade que cheguei ao fim com um riso, mas ao mesmo tempo com sentido de tristeza. Vejo neste texto algo interessante: li-o, levei um «ralhete» por parte do autor, mas chegeui ao fim e digo bem dele. É, então, um daqueles sermões que levamos mas concordamos com ele - o que é bastante raro.

    Creio que seja assim possível educar filhos com sermões bem feitos mas que eles próprios se sintam bem e culpados ao ouvi-los. Com isto, todos os filhos, todos os pais, todos nós filhos, todos nós pais, conseguiremos acabar com estas desigualdades existentes aos nossos olhos.

    Comecemos dentro de nós, depois aos nossos amigos, depois à nossa cidade, ao nosso país, ao nosso continente, ao nosso mundo.

    In terminis, demos a mão ao nosso melhor amigo, e à pessoa mais distante do mundo e assim conseguiremos abraçar uma humanidade inteira. Afinl, ainda que dentro das nossas casas fechados por quatro paredes, há uma casa global para todos os homens - o planeta Terra.

    Paulo Jorge Matos Mateiro

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  3. Entendi o teu querer passar para 2010...
    Este mundo tão meu e tão teu e tão do outro...
    Tão nosso e tão de ninguém.
    Somos todos feitos da mesma matéria...e embora possamos estar felizes tb podemos estar destroçados no mesmo exacto momento.
    Sei que não podemos mudar o mundo... mas podemos mudar o mundo(o que está ao nosso alcance).
    Desejo-te um ano de paz de espírito e espero poder ler mais textos destes, onde o paradoxo é a figura principal... a humanidade passou para segundo plano (mas não no teu texto, aqui isso está bem patente nas entrelinhas)

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